segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Dedilhando a poesia



"No princípio era o verbo",  já disse João. Tudo é filho das ações premeditadas ou não. Todas as vidas formam a prole dos intentos concebidos pelo fazer.

A arte de habitar algum lugar está na busca pelas possibilidades e pela criatividade que supre sua falta. No final das contas,  a existência é uma poesia colossal que exige muito pouco da alma que se move.  Da alma andarilha desse universo inconsequente.

O cerne da falta de  sentido que todos buscam superar está na compreensão do mundo sem conceitos. Desfazer-se das entranhas pretenciosas do existir aproxima toda a criação de sua essência. É o mesmo que tocar nos versos. Amar as sutilezas e as banalidades de uma realidade que, por si só, não possui razão em ser, a não  ser que se aceite a riqueza de todo o vazio  que a ronda.

Carlos Nejar apostou que apenas a junção do elemento mágico no prosaico consegue elevar o poema à potência de sonho. Assim também acontece com a rotina dos dias. Todo o sentido vivenciado cotidianamente pode sobrepujar o enfadonho ciclo que,  involuntariamente, se procura respeitar. O desrespeito das métricas é o que auxilia a contabilização de amores e pequenos prazeres.

O sonho de uma existência faz-se à medida em que o verbo,  à  Manoel de Barros, delira. É quando permitimos a permutação das funções. O aniquilamento delas.  Permitir a inutilidade é despir-se de conceitos e abrir as portas às descobertas.  É sempre possível descobrir o que já foi descoberto,  basta darmos olhos às palavras e aos desconceitos.

Os neologismos da vida são de propriedade de quem conhece demasiadamente a linguagem a ponto de criar a intimidade da invenção. Conseguir inventar a si mesmo.  Atribuir novos sentidos às lembranças.

Há, pois, sempre uma câmara secreta sedenta por ser desvendada na linguagem. A linguagem contém todas as vidas encrustadas em suas paredes.

Inteligentemente, Demócrito já profetizou que a palavra é  a sombra do ato.  Se a palavra é  a sombra do ato,  o coletivo de toda essa conversa resulta na vida e na linguagem como um todo.  Todas as peraltices de uma existência são vislumbradas na respiração das contextualizações mentais que antecedem ações.

O maior desafio para a ciência não  está  na comprovação  das leis da física, mas na existência dos poetas. Toda a vida que sobrevive pela imaginação é imprevisível. A todo o momento, somos capazes de inventar e poetizar. Descobrir e perder. Amar e doer.

O maior prazer de qualquer poeta está no poder insuperável de descobrimento. O amor pela poesia está na contingência do desconserto. É o orgasmo da falta de dados.  A invenção da descoberta.

Se não  há informações,  há,  então,  a sua criação. As estrofes não exigem veracidade. Para ser verossímil,  basta a coincidência com os sentimentos.  Basta o vazio completo com mais vazio.

A criação de um poeta tem sentido à medida em que consegue despadronizar pensamentos. Reinventar vidas. Personificar objetos e sensações.

Fazer das árvores aliadas na levada dos dias. Transformar as andorinhas em velhas companheiras. Montar no vento como quem monta em um cavalo,  à procura e rumo a qualquer lugar.

Mais uma vez,  Nejar soube traduzir o grande poder da poesia, que é o de saber ser o fogo da água e a água do fogo. Nenhuma antítese é  empecilho para as existências. Nenhuma afirmação é  absurda para quem está  aberto às reinvenções.

A crítica e a dificuldade em aceitar a poesia talvez estejam,  então,  no medo do desconhecido.  Todo o versista ama a escuridão. Conhecer os abismos. Criar abismos no conhecido.  Fazer íntimo o desconhecido.

Dedilhar a poesia é,  pois,  querer as imprecisões ressurgentes de qualquer ameaça de verbo.  A potência em ser já é suficiente para o poeta. A falta dela também.


THIANE ÁVILA.

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