quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Um tempo relativo



As horas são armadilhas de quem conta os anos. A matemática do tempo é uma perdição aos que estão de passagem. Há um abismo entre as vidas e sobrevidas. Entre o sopro e a respiração.

Vidas largadas à sorte de uma resistência orgânica sem fundamento. Anos que andam de mãos dadas com o desânimo de percorrer novas rotas. De optar por novos caminhos.

O célebre Padre Antônio Vieira, muito à frente de seu tempo, já constatou a diferença colossal entre viver muitos anos e morrer de muitos anos. A contagem dos minutos é preocupação de quem vive muitos anos, não de quem muitos anos vive.

Viver os anos é estar submisso ao tempo. Escravo de uma rotina frustrante que aponta a um fim previsível. Corriqueiro à maioria. Aceito por ser irremediável. É a vivência triste do início e do fim, sem preocupar-se com  o intervalo dos extremos. Os meios não justificam os fins. Nem os fins justificam os meios. Não há meios.

Há quem seja um amante fiel do tempo. Um relógio ambulante da existência. É a vida de abelhas operárias. É o conformismo perante uma condição imposta por si mesmo. Trata-se da assimilação errônea de uma estagnação imutável.

Viver muitos anos está ao alcance de qualquer indivíduo que saiba cuidar minimamente de sua saúde orgânica. De sua subsistência. As vidas de subsistência são aquelas que não enxergam o voo dos pássaros, tampouco escutam o caminhar das formigas que fazem trilha logo abaixo de nossa existência.

A vivência pelas virtudes triviais é concebida apenas por uma espécie de obrigação em ser. Não houve escolha. Nasceu, tem que sobreviver.

Nossas virtudes não são mais do que vícios disfarçados, e os vícios, grandes virtudes, disse Carlos Nejar. Durante muitos anos viver é uma virtude viciante. Quem é inclinado ao movimento não permite que os anos passem, como um vento torto, pelas horas de seus dias.

É preciso passar pelo tempo e ter propriedade para adiantar ou atrasar o relógio de quando em vez. Saber negar destinos e aceitar peraltices. Viver o desconforto dos dias com a boca desprendida para as surpresas.
O amor às rugas pertence apenas àqueles que sabem o significado de cada uma delas. Que dão sentido aos traços marcados pelo tempo. Justamente marcados pelo tempo.

Quero envelhecer íntima de minhas rugosidades. Lembrar todos os sonhos que ajudaram a formar aquelas expressões. Cada luta despendida será marcada no rosto com a deformação de algo que apenas se formou. Afinal de contas, é preciso que o espírito maduro seja visto no espelho. Que a mudança do tempo seja refletida na carcaça que serviu apenas de proteção para as emoções das sensações.

Cada minuto que se passou deverá, no final, ser recordado com o apego necessário à valorização. Ao amor às experiências embebidas de erros e acertos. De perdas e ganhos. De escuridão e luz.


Assim o final de cada ciclo deve significar. Apenas uma pausa para recapitulações e planos futuros. E se pensamos no futuro, é porque estamos inseridos no passado, não é, Nejar? Passado e futuro. Futuro e passado. Designações para compreensão humana. Apenas facilidades de comunicação. No final das contas, não há nada além do hoje. O tempo é pó. 


THIANE ÁVILA.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Dedilhando a poesia



"No princípio era o verbo",  já disse João. Tudo é filho das ações premeditadas ou não. Todas as vidas formam a prole dos intentos concebidos pelo fazer.

A arte de habitar algum lugar está na busca pelas possibilidades e pela criatividade que supre sua falta. No final das contas,  a existência é uma poesia colossal que exige muito pouco da alma que se move.  Da alma andarilha desse universo inconsequente.

O cerne da falta de  sentido que todos buscam superar está na compreensão do mundo sem conceitos. Desfazer-se das entranhas pretenciosas do existir aproxima toda a criação de sua essência. É o mesmo que tocar nos versos. Amar as sutilezas e as banalidades de uma realidade que, por si só, não possui razão em ser, a não  ser que se aceite a riqueza de todo o vazio  que a ronda.

Carlos Nejar apostou que apenas a junção do elemento mágico no prosaico consegue elevar o poema à potência de sonho. Assim também acontece com a rotina dos dias. Todo o sentido vivenciado cotidianamente pode sobrepujar o enfadonho ciclo que,  involuntariamente, se procura respeitar. O desrespeito das métricas é o que auxilia a contabilização de amores e pequenos prazeres.

O sonho de uma existência faz-se à medida em que o verbo,  à  Manoel de Barros, delira. É quando permitimos a permutação das funções. O aniquilamento delas.  Permitir a inutilidade é despir-se de conceitos e abrir as portas às descobertas.  É sempre possível descobrir o que já foi descoberto,  basta darmos olhos às palavras e aos desconceitos.

Os neologismos da vida são de propriedade de quem conhece demasiadamente a linguagem a ponto de criar a intimidade da invenção. Conseguir inventar a si mesmo.  Atribuir novos sentidos às lembranças.

Há, pois, sempre uma câmara secreta sedenta por ser desvendada na linguagem. A linguagem contém todas as vidas encrustadas em suas paredes.

Inteligentemente, Demócrito já profetizou que a palavra é  a sombra do ato.  Se a palavra é  a sombra do ato,  o coletivo de toda essa conversa resulta na vida e na linguagem como um todo.  Todas as peraltices de uma existência são vislumbradas na respiração das contextualizações mentais que antecedem ações.

O maior desafio para a ciência não  está  na comprovação  das leis da física, mas na existência dos poetas. Toda a vida que sobrevive pela imaginação é imprevisível. A todo o momento, somos capazes de inventar e poetizar. Descobrir e perder. Amar e doer.

O maior prazer de qualquer poeta está no poder insuperável de descobrimento. O amor pela poesia está na contingência do desconserto. É o orgasmo da falta de dados.  A invenção da descoberta.

Se não  há informações,  há,  então,  a sua criação. As estrofes não exigem veracidade. Para ser verossímil,  basta a coincidência com os sentimentos.  Basta o vazio completo com mais vazio.

A criação de um poeta tem sentido à medida em que consegue despadronizar pensamentos. Reinventar vidas. Personificar objetos e sensações.

Fazer das árvores aliadas na levada dos dias. Transformar as andorinhas em velhas companheiras. Montar no vento como quem monta em um cavalo,  à procura e rumo a qualquer lugar.

Mais uma vez,  Nejar soube traduzir o grande poder da poesia, que é o de saber ser o fogo da água e a água do fogo. Nenhuma antítese é  empecilho para as existências. Nenhuma afirmação é  absurda para quem está  aberto às reinvenções.

A crítica e a dificuldade em aceitar a poesia talvez estejam,  então,  no medo do desconhecido.  Todo o versista ama a escuridão. Conhecer os abismos. Criar abismos no conhecido.  Fazer íntimo o desconhecido.

Dedilhar a poesia é,  pois,  querer as imprecisões ressurgentes de qualquer ameaça de verbo.  A potência em ser já é suficiente para o poeta. A falta dela também.


THIANE ÁVILA.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Pra não dizer que eu não falei do Natal



Então é chegado o momento. O momento de distribuir abraços. O momento de ver quem há tempo não se via. O momento de planejar a felicidade para um início que está logo à frente. A uma véspera de distância.

Natal rima com tanta coisa. Final de ano é fase imantada com os planos. Xifópago dos sonhos. Siamês das confabulações.

Vejo o Natal como alguém que procura, nem que seja por alguns instantes, alternar o lugar das sombras. Estrofar tristezas. Poetizar a rotina de uma forma romântica e fugaz. Alguém, ainda, que tem a capacidade de despertar da hibernação sonhos. De fertilidade ímpar para gerar outros tantos.

Os sonhos que nos acorrentam não podem esperar. O nocaute que nos dão pela falta de persistência é um alerta de perigo à sanidade. Uma luz vermelha que pisca quando algo está errado. Quando não priorizamos prioridades. Quando não nos atentamos aos detalhes que, por si só, já seriam suficientes à plenitude de ser.

Sempre desejo ir embora no Natal. Refugiar-me em um lugar distante, onde possa transcender a um plano só meu. Meu e de algo superior. Meu e de mais ninguém. Onde eu possa, talvez, fazer personificar minha consciência. Fazer de meus sonhos uma prosopopeia para que eu possa dar mais valor. Sentí-los no toque. Valorizar como um igual.

O nocaute de uma vida amargurada é a prova de um caminhar contra o tempo. De uma perspectiva sem panorama. De um ser por ser. Um respirar sem sentir o ar percorrer o corpo. Uma vivência nômade dos sentimentos.

Não é possível que os sonhos vivam em nós de aluguel. Que as lutas sejam vãs. Que não busquemos os resultados mesmo nas derrotas. Resultados são o final. A graça de viver é chegar ao final. Não há sentido em existir se não houver motivação de continuar. Ânimo em ser.

Não vale a pena sujarmo-nos fumando apenas um cigarro. Não faz sentido buscarmos as realizações que estão logo ali, à venda em qualquer banca de revistas. Isso qualquer um faz. É o sentar-se e acomodar-se. É o viver sem o ser. É o ser que apenas existe.

Já passou meu carnaval. Não estou esperando o próximo. Percorrer os dias e noites esperando pelos feriados é a maior aflição de qualquer tempo. De qualquer idade ou credo.

Não beijo qualquer esmola de vida para não gastar o meu batom. Eu estou sempre aflita pelas chegadas e pelas voltas. Pelo velho e pelo novo. Pelo novo que ficou velho e pelo velho que voltou a ser novo.

É que eu estou sempre indo embora. Deixando meus cascos e construindo novos. Vivendo os Natais com a mesma emoção de cada amanhecer. Os fins são apenas pretexto para os recomeços. Na verdade, não há final.

O presente que mais anseio e que peço ao bom velhinho é um relógio que possa marcar o tempo que falta para eu esquecer certas coisas. Amar certos erros. A felicidade que compro em bancas de revistas estão acumuladas e envelhecidas em meus armários. Basta a ameaça de qualquer faísca e elas esvaem-se.

No entanto, ainda quero ir embora. Se for para marcar alguma coisa, façamos que o Natal marque as despedidas e os novos encontros. De alguma forma, é preciso sempre deixar-se ir. Despedir-se de algumas partes. Dar boas-vindas a outras.

Natal, então, talvez seja uma grande viagem. O trenó talvez seja uma mensagem sublimar dos adeuses. O Papai Noel talvez não passe de um intermediário das lembranças. O saco enorme que carrega, apenas uma simbologia do peso das bagagens que carregamos sem que tenham rumo.

No momento em que o bom velhinho termina sua jornada, perceba que o saco está vazio. O trenó, mais leve. É, pois, o recomeço. O fim da viagem que se confunde com o seu início.

O Natal talvez seja, então, simplesmente passagem. Uma viagem psicológica necessária e da qual não escapamos, nem que seja em apenas um dia do ano. Imprudentes, adiamos tanto que chega uma hora que nos obrigamos a parar.

Essa é a época certa para irmos embora. Para pararmos de festejar pelos restos que nos são destinados. Pelas sobras de amor. Pelas parcelas de carinho e preocupação.

A passagem que a data marca é um apelo de autovalorização e de amor-próprio. Ir embora da vida que se leva não é deixar tudo, mas saber deixar marcas aos que ficam e rastros que mostrem o caminho de volta, nem que seja para uma visita. Amar cada passo dado, eis o segredo.

Antes de ir embora, desejo que todos esbarremos com nossos sonhos em cada esquina. Que sejamos vítimas da incapacidade de viver pela metade e de aceitar parcelas de vínculos. Que, assim como nossos amores, também saibamos nos doar por inteiro. Sofrer por inteiro. Doer por inteiro. Sorrir e amar por inteiro.


Só quem é inteiro é capaz de negar frações de vida. O Natal deve significar completude de algo. De preferência, que cada pedaço de alma que foi sendo esquecido em ruelas e becos possa se reencontrar e fortificar a existência. Essa viagem toda, então, valerá a pena. Vagando pela vida para permanecer nela. Sendo nômade para criar raízes. Sendo Natal para ser o ano inteiro.


THIANE ÁVILA.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Sem medo de querer voltar


Não é apenas para frente que se anda. Não é apenas para o norte que a bússola aponta. Não é apenas para o futuro que se deve olhar.
A autoajuda que impede o retorno não está baseada na aprendizagem. A sequência de capítulos dos dias é o que permite o crescimento. E o roteiro, veja bem, o roteiro não está encerrado. Um autor ou diretor nunca escreve à caneta suas tramas. Os dias alteram os humores. O clima é, muitas vezes, uma condição para os sorrisos.
Não é apenas para frente que se anda. Viver só faz sentido se tivermos visão periférica, olhos nas costas e, de preferência, nas solas dos pés também. Quem enxerga as peculiaridades do caminho é capaz de mensurar o valor dos detalhes. Assimilar de forma superior as pedras estúpidas que surgem para ferir os pés desacostumados com a lida.
Passos retrógrados são aliados na trajetória. Só anda para frente quem sabe voltar. Só olha a dor de frente quem já experienciou sua companhia e que, portanto, entenderá sua fragilidade.
Não tenho medo de voltar porque já conheço o caminho. Aproveito para refazer os passos e lembrar os erros. Reviver é a possibilidade de acertar o erro. Encestar a bola que foi perdida. Respirar uma sobrevida que ficou para trás.
Sobrevivendo, nós vamos nos refazendo. Amando os desacertos. Dando olá a velhos fantasmas. Voltar é isso. É reconhecer uma sombra e estar disposto a transformá-la em luz. É dispor-se a sair de um esconderijo de corpos putrefatos para o nascer de uma nova alma, leve e cristalina, alva e cândida.
O suor que sequei lá atrás é a prova de que deu trabalho andar para frente, mas que a frente só existe em virtude do que ficou. Não valorizar o passado é não valorizar o agora. Sem remoer as derrotas, é deixar a fácil alcance o botão que rebobina os capítulos, que faz jus aos passos.

É amando as partes que a gente aprende a amar o todo. 

THIANE ÁVILA.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Quero flores sem vida



A lembrança me é mais atraente. A memória do que passou é, para mim, a prova da validade do momento. De acordo com a intensidade do pensamento, está a relevância da experiência.

O prender-se a um nome. O apego a um cheiro. Tudo parte do passado. Tudo engavetado na rememoração. Vidas somadas aos exageros dos devaneios.

Quem lembra sempre inclui ou exclui algo da lembrança. E é isso que a torna ainda mais afável e deleitosa. É o misto do imaginário com o real. É a sensação física na ficção. É a ficção verídica da irrealidade.

A lembrança é a capacidade de unir as intenções com as vivências. No pensamento, somos capazes de terminar uma fala interrompida. Capazes de reproduzir uma ação com outro sentimento.

Reviver é experienciar a tristeza quando se está feliz. É dançar um ritmo ao som de outra música. Recordar é sorrir na derrota e chorar na vitória. Lembrar um amor é amar duplamente. Lembrar um desamor é, talvez, apiedar-se dele. É a condolência de um gesto agressivo praticado por si mesmo. É o arrependimento pelo pouco feito. É a satisfação pelo pouco tempo perdido.

Quero flores sem vida. Quero apenas a lembrança do que um dia elas foram. Tomar-lhes em minhas mãos e sentir a sinestesia da sua juventude com o cheiro exalado hoje. O cheiro de morte. Uma morte viva pela existência irrefutável da lembrança.

Valorizar a memória é o mesmo que sentir prazer na releitura. A releitura de uma mesma história sob diferentes circunstâncias. Sob diferentes formas de si mesmo. Cada dia somos um. Os pensamentos serão sempre uma novidade.

Não há possibilidade em rememorar algo da mesma forma de um segundo para outro. A eternidade da lembrança está subordinada exclusivamente ao instante exato de sua duração.

 Rebobinar momentos é sujeitá-los à constante e inevitável adequação.  Mais que isso, é querê-los mudados. É precisar da mutação para sobreviver. É a transformação que dignifica. A alternância que imortaliza.

Trata-se da valia do mofo, da poeira e do ácaro. Travesseiros pesados pelo volume desnorteante. Lençóis manchados de amor, intocáveis e enrijecidos.

O amor em pequenas parcelas é a sequência de capítulos da novela dos amantes. Cenas esquizofrenicamente sujeitas à repetição. Um acervo impenetrável de um longa-metragem feito sem a pretensão do presente. É o seriado gravado. O romeu e julieta da mente- sempre com nova versão. Sempre com novas personagens.

De preferência, quero os sapatos sujos. Imundos de trajetos percorridos. Enlameados de percalços e cuidadosamente costurados para a proteção a dias de chuva. Sapatos usados na primeira entrevista de emprego e na promoção.

Quero o vinil de minha história. Preciso do LP de minhas desilusões. Careço do berço usado para levar-me aos sonos tranquilos da infância.


Preciso que me lembre de como nos conhecemos, a seu modo. Vou acrescentar a sua sensação à minha. Deixar que outro ponto de vista penetre-a para que, assim, torne-se indubitavelmente particular.


THIANE ÁVILA.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

De copo sempre cheio e coração vazio



O copo é a companhia do desalento.  É a ternura da carência. É a válvula de escape para a mão desprovida de outra para segurar.
Os românticos jamais ficam sozinhos. A necessidade de manifestação do amor e afeto por algo é uma dependência extasiante. Os espaços entre os dedos, quando incompletos, provocam dor de morte. Choro retorcido de quem grita sem emitir som.
O líquido preenche no copo o espaço desocupado no coração. O copo é o coração. É a bengala dos amantes. O copo em uma mesa de bar é a clínica psiquiátrica do ensandecido de paixão. Do dependente do escárnio de uma mendicância de afeto. Um encostar que simula um carinho. Qualquer coisa que possa se aproximar.
Beber para esquecer. Beber para lembrar. O ébrio de amor, quando combina a bebedeira da indiferença com a da bebida, submerge-se ainda mais nas lembranças.
Seres realmente tristes parecem ter apego à tristeza. Não se recorre à roda de samba ou a um bolero na infelicidade. O desafeito de amor não procura se curar alimentando pensamentos positivos. A tristeza, ao contrário disso, é preservada a sete chaves. Passa a ser um membro especioso. É intocável.
Sertanejo de raiz. Tangos. Poemas de casos perdidos. Filmes de drama. Esses são os remédios para o coração vazio. O vazio é o único capaz de completar esse nada que insiste em fazer morada. Nada será tão compatível. Nenhuma autoajuda servirá de apoio. Conselhos são inúteis.
Há apenas a necessidade da reclusão. A única companhia é o copo. O único capaz de escutar calado, de permitir o choro exagerado e barulhento. Aquele que não enxuga as lágrimas, mas ajuda a aumentá-las. Um mendicante de lamentos. Um carniceiro dos descorçoados.
Não há maneira melhor de aumentar a agrura do que com um copo cheio. O líquido que percorre os canais do corpo é absurdamente compatível com as dilatações das artérias e das veias. É feito monóxido de carbono com o sangue. Alimenta cada célula sedenta por algo que a motive a continuidade de suas funções.
Copo cheio e coração vazio. A bebida que simboliza os planos desfeitos. O destino borrado. A cerveja cuja cevada é a marca de uma vida interrompida. Um vinho preservado às custas de promessas inadimplidas.

E enquanto a bebida se esvai, a tristeza vai tomando corpo. Os planos vão sendo novamente ingeridos. De tantos vazios o coração se enche aos poucos. De tantos copos segurados as mãos vão reestabelecendo a sensibilidade de se abrir ao encaixe de outros dedos. O copo estranho é o primeiro contato com o amor desconhecido. 

THIANE ÁVILA.